terça-feira, 25 de março de 2008

Eu estive lá




No auge de seus 66 anos e sorrindo mais que o habitual, Bob Dylan subiu no palco do Via Funchal as 22 horas, com uma pontualidade quase britânica, apesar de ser um exemplar raro da música folk dos Estados Unidos.
Vestido todo de preto, com um chapéu de abas retas, muito semelhante ao usado na capa do LP “Desire” (1976), Dylan tocou o primeiro hit da noite, Leopard-Skin Hat-Pill Box. Com a costumeira voz rouca e arranjos totalmente diferentes das versões originais, a música não permitia um fácil reconhecimento.
É bom ressaltar: há um bom tempo Dylan já não usa os arranjos convencionais em suas músicas mais conhecidas. Em cada turnê, são tocadas de formas diferentes, o que causa uma estranheza inicial nos ouvintes, que, sentados em suas cadeiras, entram em euforia após finalmente reconhecer a música que está sendo reinventada.
O show foi, literalmente, para poucos: além da reconstrução das próprias músicas, Dylan fez o público gastar um bom dinheiro no ingresso, que variava de 250 a 900 reais. Só não se decepcionou aquele que realmente compreende a obra de mais de 40 anos do compositor.
As duas canções seguintes mal foram percebidas pelo público, que ainda esperava algum hino. It Ain’t Me, Baby, de 1964 e I’ll Be Your Baby Tonight de 67, causaram apenas alguns gritos abafados por outras tantas palmas. O show animou quando o cantor tocou Masters of War, considerada por muitos – e negada por Dylan – como um hino dos direitos civis da década de 60. As inevitáveis músicas do último trabalho, Modern Times, considerado pela revista Billboard como o melhor álbum de 2006 tomaram corpo quando Dylan acampou na frente do teclado, onde ficaria até o fim do show. Entre elas, vale destacar Spirit On The Water e When the Deals goes Down, executadas com perfeição pela banda de apoio.Outros clássicos ainda foram tocadas, como Highway 61 Revisited e Stuck Inside a Mobile. Dylan causou surpresa quando tocou Things Have Changed, música ganhadora do Oscar em 1997, rilha sonora do filme Garotos Incríveis, dirigido por Curtis Hanson e estrelado por Michael Douglas e Robert Downey Jr. O refrão, “People are crazy and times are strange, I'm locked in tight, I'm out of range I used to care but - things have changed” foi cantada em alguns cantos do Via Funchal, mas nada comparado a música que fecharia essa primeira parte do show. Like a Rolling Stone, que já rendeu gritos de revolta (“Judas! Traidor!”) ao ser tocada em guitarras elétricas pela primeira vez no The Royal Albert Hall em Londres, comoveu o público paulista, que levantou das mesas para cantar um dos maiores sucessos de sua carreira. Após o êxtase, foi dada uma pausa na apresentação. Cinco minutos de silêncio foram interrompidos por alguns gritos de “Bob Dylan! Bob Dylan!”. Toda a banda estava voltando ao palco. Após apresentar cada integrante, Thunder On The Mountain, som country que lembra as raízes da música norte-americana, e também é a música de abertura do último cd do compositor.
E para fechar a primeira noite de apresentação no país após mais de dez anos, Dylan contrariou as expectativas criadas em torno de Blowin in the Wind, uma de suas músicas mais famosas, e tocou All Along The Watchtower, que também fez sucesso na voz e na guitarra do lendário Jimi Hendrix. A canção fechou a primeira apresentação da turnê Never Ending Tour no Brasil.
O repertório do show percorreu as diversas fases e faces de Dylan, que poderão ser vistas no filme que estréia ainda em março no Brasil, “Não Estou Lá”, do diretor Todd Haynes. No longa-metragem, Bob Dylan é interpretado por sete atores e atrizes que encarnam o cantor em diversas fases de sua vida. E por mais variadas que essas faces tenham sido, ao menos por uma noite, São Paulo pode ver que o bardo da música folk, apesar da idade, se divertiu como criança.